Disturbia

Miniconto de Halloween

Fundo azul e bordas roxas. Uma ilustração linda feita pela Kah Design baseada em uma foto pessoal. Rosto de pele clara, cabelos castanhos avermelhados, um lápis na mão e um casaco branco com a logo da série Friends na frente. Ao lado, um título escrito Newsletter.
Disturbia - Miniconto de Halloween 🧹 
(um pouquinho de fantasia para fechar outubro)
Capítulo Único

A casa está mais fria do que o normal, e preciso fechar a janela do vento que corre a fim de conseguir arrumar o meu cabelo para a festa de Halloween. Prendo só um lado dos cachos armados e amasso as pontas para deixá-los ainda mais cheios. A expressão que me encara de volta no espelho está longe de parecer empolgada, mas não é pela música, pela bebida ou pela fantasia pouco elaborada que estou me arrumando.

Sem a corrente de ar, o cheiro de vela queimando intensifica. A sessão feita mais cedo em casa com minha mãe e minhas tias — da qual eu só conseguiria escapar se não tivesse nascido nesta família — deixou o ambiente carregado de uma energia quase palpável. Eu podia ser cética sobre muitos rituais, mas era impossível negar a corrente elétrica que permaneceria pelos próximos dias.

Talvez por ser de uma geração mais cínica, eu não levava as tradições tão a sério, para a infelicidade de uma tia em particular, extremamente dramática e sempre responsável por montar o altar nas datas estipuladas. Ironicamente, foi do armário dela que consegui o figurino, composto por um vestido escuro de mangas longas e pontudas, com estampa de constelações e desenhos abstratos que só quem é do clã reconheceria.

Pelo vidro da janela, noto que a fogueira está pronta, ainda apagada. No céu, a lua ilumina sem culpa, se fazendo protagonista e afastando qualquer resquício de nuvem que queira se aproximar. Pego a bolsa minúscula e a chave do carro antes de descer as escadas sem pressa de encontrar os olhares tortos.

Minha mãe se aproxima, mas não diz nada. Com olhos escuros como os meus, ela transmite em silêncio todos os avisos que uma mãe comum diria à filha antes dela sair à noite para uma festa. Nossa comunicação nunca precisou de muitas palavras. Ela levanta um colar longo com a insígnia de Hécate e o pendura no meu pescoço. Proteção.

Os calafrios começam a poucos metros de casa. Aquele arrepio que sobe pelo meio das costas até o couro cabeludo, anunciando presenças estranhas. Presenças essas que posso ver a olho nu. Vagam pelas ruas, uns confusos, outros buscando — alguém, soluções, desfechos. Sou percebida de volta, mas nada nem ninguém se aproxima.

As histórias de terror contadas nas rodinhas da escola me deixavam confusa. Cada presença presa no banheiro tinha uma razão de ser, cada sonho e sensação de déjà vu, justificáveis. No entanto, não eram essas as explicações que outras crianças, menos ainda seus pais, queriam ouvir. Com o tempo, aprendi a não apontar que o amiguinho imaginário de um colega continuava ao seu lado, mesmo que você não desse mais conversa para ele.

Não é difícil identificar o endereço da casa onde acontece a festa. É uma rua com poucas residências e está repleta de adereços por toda a extensão da calçada. Ainda que seja uma festa entre universitários, noto alguns adolescentes infiltrados por baixo das fantasias mais elaboradas. Emboco o carro em um espaço que pode ser considerado uma vaga e termino o trajeto a pé.

Não identifico a música, mas o som está alto o suficiente para que as batidas ecoem para o lado de fora. Como esperado, o interior está pouco iluminado e se assemelhando a uma mansão mal-assombrada. Desvio de um palhaço com dentes afiados, claramente intoxicado, e tento reconhecer alguém entre o grupo que dança na pista improvisada da sala e outros que conversam pelos cantos. À meia-luz fica difícil saber quem é real e quem está de passagem em uma noite que muitos brincam de chamar quem já se foi com tabuleiros e rituais de mentirinha. A questão é que não é difícil invocar alguém, só que nem todo mundo consegue vê-los ou senti-los, ou têm medo de conseguirem.

Percebo os quadros de molduras antigas nas paredes. Apesar das decorações cafonas, eles são reais, tem pessoas reais. Pessoas eternizadas em momentos distintos no tempo, que não pertencem mais a este plano, mas que têm por onde voltar quando quiserem graças às pinturas. Sinto a nuca arrepiar e sigo por instinto o olhar que me puxa. Ele veio.

Um grupo de universitários conversa, animado, ao redor dele. Está nítido que não presta atenção no que dizem, mas também não se aproxima de mim. Estamos fazendo isso há meses. Entre grupos de estudos e projetos, trocamos poucas palavras sobre assuntos pessoais. Um toque esbarrado, descuidado, aqui e ali, mas nenhum dos dois se atreveu a propor algo diferente de uma tarde de estudo na biblioteca do campus. Até duas semanas atrás, quando a turma inteira recebeu e-mail sobre uma festa de Halloween para arrecadar fundos. Uma desculpa qualquer para conseguir bebidas alcóolicas com dinheiro alheio disfarçado de caridade.

Não é como se eu tivesse outro compromisso — Nico dissera, dando de ombros, sem olhar na minha direção.

Não tocamos mais no assunto e o comparecimento de ambos ficou no ar. Ali, parecia que a nossa dança continuaria. Ando até a cozinha e pego um copo de água, encho de gelo, ponho duas cerejas e um canudo — é mais fácil fingir que é um drinque de vodca do que explicar que não quero beber álcool.

Encontro seu olhar do outro lado da sala, me deixando ser presa por vários minutos. É um daqueles momentos em que o salão se aquieta, a música fica abafada e as pessoas dançam em câmera lenta. De repente, estamos só nós dois, paralisados pela energia que vem se alimentando há tanto tempo.

— Lara! — Uma voz interrompe o momento. — Que bom que você veio!

É uma colega de turma, que começa a puxar assunto. Sou obrigada a desviar os olhos de Nico, mas minha atenção não está focada no que ela diz, que, por sua vez, também não parece esperar alguma resposta minha. Deve dizer algo sobre seu figurino de Arlequina, porque gira o bastão de baseball e brinca com uma mecha do cabelo, pintada de rosa.

A todo momento, sinto o descompasso no peito de estar sendo acompanhada. Apenas quando Maira, à minha frente, ameaça tocar no meu colar, reajo por instinto:

— Não — sai com um pouco mais de autoridade do que o necessário.

Ela arregala os olhos, surpresa com a minha mão circundando seu punho, e dá um sorriso sem graça.

— Desculpa — ela diz e recolhe os dedos curiosos. — É muito bonito.

— Antigo. De família — explico de forma sucinta.

Um pouco desconcertada, ela capta a mensagem e pede licença, alegando que viu um outro colega chegar. Exalo pela boca e tomo um pouco da água, agora saborizada e meio nojenta.

Um pouco arrependida de ter feito uma maquiagem elaborada e não poder jogar água no rosto, opto por umedecer a nuca. Sinto um pouco de alívio, mas a casa superpopulosa de pessoas vivas e outras não, deixa o ambiente carregado. Não tem nem uma hora que cheguei e já quero ir embora. No entanto, sendo noite de Halloween, minha casa estaria tão cheia quanto esta.

Saio do banheiro no segundo andar, deixando-o livre para a próxima pessoa da fila, mas postergo descer as escadas. Em vez disso, me vejo de frente a um quadro de um senhor que, diferente de muitas pinturas, não olha para frente, mas para o horizonte.

Sinto Nico se aproximar antes de virar para confirmar que é ele mesmo. Uma mão ocupada com o copo, e os lábios com um sorriso enigmático. Ofereço outro de volta, cedendo enfim ao que construímos.

— O que ele te contou? — Nico gesticula com o queixo para o quadro.

Estreito os olhos na direção dele, me perguntando se está brincando ou se espera uma confissão.

— Perdeu a esposa e não soube viver sem ela — conto e sinto um arrepio me subir pela coluna. É como se estivesse ouvindo a história através das sensações do corpo. — Procurou sessões com videntes e a esposa falou em todas elas que ele não podia desistir de viver ou não se reencontrariam.

Videntes? — Nico dá uma risada, soando surpreso. Talvez não esperasse uma história tão elaborada.

— Morreu de tuberculose, e eles não se reencontraram mesmo assim — continuo com mais firmeza na voz e fico totalmente de frente para ele. — Está por aí, toda noite, esperando que ela apareça.

Sei que meu semblante não carrega sarcasmo algum, mas ele ainda pode interpretar como quiser. Na dúvida, ele solta um riso nervoso, cheio de ar, mas o pomo de Adão sobe e desce com dificuldade.

— Isso é que é criatividade — ele diz depois de beber um pouco da cerveja que já deve estar quente.

Um lado da minha boca repuxa em um sorriso malicioso, e eu disfarço, apoiando o corpo na parede, ao lado do quadro.

— Gostei da fantasia — comento, apontando para a cesta pendurada no braço. — Chapeuzinho Vermelho?

O sorriso dele cresce, e Nico faz uma pose com as mãos juntas e esticadas ao longo do corpo e um pé para trás no ar, exibindo a meia branca que vai até o meio da canela. É quase impossível segurar uma risada. Ele não entende a ironia da situação, o que torna ainda mais engraçado.

— E você está de... — Ele me escaneia da cabeça aos pés. — Bruxa?

— De mim mesma — digo ao mesmo tempo.

Um pouco mais confiante, ele se aproxima e pega minha mão na dele.

— Que eu saiba, bruxas são feias — ele provoca. — E você está linda. Você é linda.

Só isso basta para eu sentir a adrenalina me percorrer novamente. Uso a mão livre para passar o dedo na insígnia pendurada no meu peito, mas dou um passo à frente. Nos encontramos no meio do caminho, testando, devagar, até achar um ritmo nosso. O sangue está bombeando nos meus ouvidos, abafando tudo que existe ao nosso redor. Esse beijo não podia ser tão bom assim, tão fácil assim, mas quando nos afastamos, confirmo que ele sente o mesmo.

— Quer sair daqui? — A pergunta sai quase de forma automática dos meus lábios, mas já está na hora.

Nico me segue até o carro e não questiona aonde vamos no caminho. Em vez disso, tamborila os dedos no joelho exposto pela saia vermelha, inconsciente do que está por vir. Dessa vez, o vento não me incomoda, e as janelas do carro ficam abertas por todo o trajeto. Há muito mais vagantes pelas ruas, que agora olham curiosos para o banco do carona. Noto a fumaça subir para o céu de longe, denunciando a ansiedade que devem estar para a nossa chegada.

— Essa área é bem mais isolada, né? — Nico pergunta, percebendo pela primeira vez que mal há duas casas na rua.

— Aqui é um pouco mais deserto — confirmo. — Mas minha família prefere assim.

A surpresa é nítida em sua expressão quando digo “família”.

— Eles estão em casa? — ele pergunta com cautela. — Digo, sua família está?

— Estão minhas tias e minha mãe — digo. — Provavelmente no quintal, fazendo as coisas delas.

Estaciono o carro e Nico me acompanha até o lado de fora, agora com passos mais cuidadosos.

— Não é melhor eu ir pra casa? — ele pergunta, então, parecendo nervoso.

É o instinto, aquele sexto sentido que muitos ignoram ou que não percebem o que é. Tinha quase certeza de que conseguiria sentir seu coração acelerado se colocasse a mão sobre o peito dele. Forço o meu sorriso mais carismático.

— Besteira. — Abano uma mão. — Elas adoram visita.

Como se as invocasse, o trio aparece ao pé da porta antes de nos aproximarmos. Se antes Nico estava assustado, agora ele tinha certeza de que havia algo de errado. Ele alterna o olhar entre mim e elas, considerando algum outro meio de escapar. Quando alcanço sua mão, ela está gelada, lânguida — já são os efeitos da própria casa.

— Não precisa ficar com medo — minha voz sai doce, estranha para os meus ouvidos. Seus olhos já estão ficando marejados, como se aceitasse o próprio destino. — Prometo que você não vai sentir nada.

Murmuro o encanto e sinto o colar aquecer ao redor do pescoço. Retiro-o pelas contas e coloco nele, que agora tem a expressão apática e os olhos opacos. Minha tia se aproxima e o guia para o quintal da casa, onde estala a madeira da fogueira. Minha outra tia segue atrás com os instrumentos necessários para a Entrega.

— É a última vez que faço isso — anuncio para a minha mãe, que se aproxima e me dá um beijo na têmpora.

— Foi o que disse da última vez — relembra enquanto seguimos minhas tias.

— Eu gostava dele — admito. Ele afaga meus ombros.

— De repente ele volta — sugere com um tom quase esperançoso, ainda que seja uma sugestão absurda.

Subo para o meu quarto, me sentindo cansada. Troco de roupa e desço novamente, agora finalmente pronta. Nico já está desacordado na mesa de madeira do altar. Suspiro alto, parte em alívio, e me pergunto se ele sabia que esta seria a última lua que ele veria no céu.

FIM

Super de última hora:
Esse conto foi um surto de terça-feira, ele não está revisado nem mesmo sei se foi uma boa ideia, mas serviu para destravar as últimas semaninhas pesadas que tive.
Em novembro começa a maratona de Natal! Vamos deixar Psiu! dormir e começar os jingle bells.
Se ainda não leu minhas histórias, elas estão disponíveis no Kindle Unlimited ou pela Amazon — não precisa ter Kindle, é só baixar o aplicativo no celular e criar uma conta na Amazon.

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